Faleceu João Mário

João Mário Ayres d'Oliveira faleceu esta quarta-feira, dia 26 de fevereiro, ao 92 anos.

João Mário Ayres d’Oliveira nasceu em Lisboa a 26 de setembro 1932, mas cresceu e viveu em Alenquer. Tornou-se ao longo dos anos uma figura de destaque na sociedade alenquenrense, conhecido pelo seu talento mas também pela sua boa disposição. 

Estudou pintura e desenho da Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA). Teve como mestre Álvaro Duarte de Almeida, que mais tarde se tornou uma peça fundamental na construção do presépio que viria a ser montado na encosta da vila de Alenquer em 1968. 

A sua primeira exposição aconteceu num salão coletivo SNBA, em Lisboa, em 1954. A totalidade dos quadros em exibição foi adquirida por um colecionador inglês. 

Ao longo da sua carreira realizou inúmeras exposições e muitas das vezes os quadros acabavam por ser vendidos na totalidade. 

Em 1965 foi nomeado Presidente da Câmara Municipal de Alenquer, cargo que desempenhou até abril de 1974. 

Em 1992, foi inaugurado o Museu João Mário, em Alenquer. Foi distinguido em 1993 com a medalha de mérito no grau ouro pela Câmara Municipal de Alenquer.

A 25 de agosto de 2020 é internado no Hospital Pulido Valente, sendo operado ao coração a 2 de setembro no Hospital de Santa Maria. A operação foi de alto risco e esteve em coma profundo durante cinco dias. 

João Mário era cooperante da Rádio Voz de Alenquer, onde chegou a desempenhar o papel de Presidente da Assembleia Geral, sendo também pai do fundador da Rádio Voz de Alenquer, o engenheiro Duarte João Ayres de Oliveira.

À família a Voz de Alenquer endereça as mais sentidas condolências.

Pedro Folgado reage à morte de João Mário

“É uma reação complexa, a minha, porque tem várias vertentes. A primeira vertente é porque de facto ele foi um autarca, um autarca de Alenquer, alguém que gostava do seu concelho. Era uma figura proeminente. Era pintor, era muito conhecido em termos nacionais e internacionais. É uma figura de Alenquer, é uma figura que estará sempre associada a Alenquer, e Alenquer [associada] ao João Mário. E depois, finalmente, era um amigo, era uma pessoa do meu círculo de amigos. Almocei muitas vezes com ele, jantei muitas vezes com ele, em casa, em restaurantes, e portanto lamento muito, de facto, a morte dele. Percebo que, com a idade dele, um dia isto teria de acontecer, mas é sempre de lamentar a morte de uma pessoa que foi e que é tão importante para Alenquer, na sua promoção, no empenho que ele tinha nessa promoção e na preocupação que tinha. É uma perda para Alenquer, uma perda para nós, o círculo de amigos, porque era uma pessoa muito bem disposta, sempre disponível para brincar. É de facto uma figura que vai ficar para sempre no nosso coração. Lamento profundamente a morte dele, mas entendo, é a vida. E, sendo a vida assim, temos de estar preparados para ela. Só espero que descanse em paz e que, esteja onde estiver, vá olhando por nós.”

Recorde aqui a última entrevista de João Mário à Voz de Alenquer em 2022:

“Não me interessa muito a técnica, mas sim o resultado final”

Comemorou 90 anos a 26 de setembro, mas mantém-se capaz de subir ao terceiro andar da Rádio Voz de Alenquer para dar uma entrevista no programa da manhã. E pelo caminho ainda diz duas ou três piadas, algo que também caracteriza João Mário. O pintor, e muito mais do que isso, falou connosco sobre uma vida recheada de história.

Nova Verdade: Nove décadas de vida… Sente o peso dos 90 anos?

João Mário: Não noto que tenho 90 anos… Quer dizer, sinto na memória, principalmente nos nomes das pessoas (risos), mas pelo que sei é normal, já falei com vários médicos que me dizem que é normal, houve até um que me deu uma explicação interessante: “suponha que o nosso cérebro tem umas gavetinhas com informações e explicou que a primeira gaveta a avariar é a que tem o nome das pessoas”, e eu achei graça à imagem que ele foi buscar.

Concluindo, como tenho este espírito brincalhão, alivio um bocadinho a dureza da vida. A vida com os anos vai alterando, não para melhor, de forma menos simpática, traz-nos recordações menos agradáveis”.

Sempre foi assim uma pessoa divertida?

Desde sempre que tenho esta boa disposição. Quando andava no liceu, não era um aluno muito brilhante, nunca tive uma grande memória, não é de agora (risos), e havia dias em que recebia notas menos agradáveis, então não andava tão alegre e os meus colegas perguntavam logo se estava doente. Sempre fui assim.

Além de ter sido pintor, teve um passado ligado à área da política, mas não gosta muito que se diga que foi um político, não é?

Sim, não me podes considerar político. Tenho duas paixões na vida, Alenquer e Veneza, e quando surge uma oportunidade de servir Alenquer, eu estou disposto, e assim foi.

Fui vereador, não me fica bem dizer isto, mas distingui-me dinamicamente dos outros e, quando o presidente na altura acabou o período permitido para exercer o cargo, escolheram-me a mim e eu não pensei duas vezes, aceitei logo. Tinha a sensação de que algo de bom se podia fazer em Alenquer.

Mas não faz muito sentido elogiar-me a mim próprio, custa-me falar de mim na Câmara e do êxito que tive, que não foi totalmente por mérito próprio. Era o presidente de câmara em Portugal mais novo de todos, o que me dava uma classificação, digamos assim, simpática. Os ministros sentiam simpatia para comigo, jantava com eles, ia a casa deles e tive a sorte de, na altura, o dinheiro não faltar.

Lembro-me de um exemplo: na altura a igreja de São Francisco já há uns anos que não tinha teto nem telhado e não havia dinheiro para arranjar. Na altura das inundações pensei nisso como uma desculpa e fui falar com o ministro, que me disse que não podia subsidiar a igreja sob esse pretexto, porque a igreja fica na vila alta e as cheias afetaram a vila baixa. Na altura disse-lhe que choveu tanto cá em cima quanto em baixo e ele disse-me “tens razão, que se lixe, então faz” e era tudo assim… E agora posso ver aqui no livro que tive 107 prémios e 13 homenagens durante o tempo em que fui Presidente da Câmara, muito devido ao facto de ter quase tudo o que queria.

Nas inundações, por exemplo, que aconteceram 3 ou 4 meses depois de eu assumir o cargo, todos os jornais falavam das inundações do Oeste e de Alenquer nada, todos os concelhos já tinham sido visitados pelo ministro de aqui e acolá e Alenquer nada. Liguei para Lisboa, para o Ministro do Interior, e perguntei-lhe o que se passava, que estava admirado por ninguém ter vindo cá e ele não gostou e disse-me para deixar o cargo se tivesse aborrecido e eu disse-lhe que sim, que já não vinha amanhã, ao que ele me respondeu para aguardar uns dias. Passado uns dias, o empregado da câmara avisou-me que tinha chegado um senhor, que lhe lembrava um ministro, e que queria falar comigo. Ele nomeou-me, já não me recordo do nome dele nem nada… Ele veio muito impressionado, pediu-me desculpa pelo que me tinha dito e que, antes de me visitar, foi visitar o concelho de Alenquer porque não conhecia e a partir daí ainda se fortaleceu mais a ligação entre mim e a Câmara.

Com o 25 de Abril, os presidentes da câmara saíram todos, incluindo eu, mas fui convidado para continuar e… não vou dizer, mas foi por um partido do qual estou a 800 mil quilómetros de distância, foram a minha casa, mas para aquele partido não podia ir, ainda propuseram que me apoiavam enquanto independente, mas não queria recandidatar-me por ninguém. Isto para dizer que não saí pelo desagrado das pessoas, mas porque tinha de ser.

Em que altura é que a pintura entrou na sua vida?

A pintura é a grande paixão da minha vida, desde criança. Como disse há bocado, nunca fui grande aluno, exceto na área do desenho. Fui sempre muito ligado aos bonequinhos e às figurinhas e assim que tive idade para ir para Belas Artes entrei, em 1950, e tive quatro anos. Só quatro anos porquê? Porque em Belas Artes as aulas eram muito dedicadas ao ser humano, pintar homens e mulheres nus e eu estava farto de homens e mulheres nus (risos).

Eu queria era pintar o sol, o ar livre, as paisagens, as paisagens urbanas… Nessa altura fui embora e fui ter com um mestre, nessa altura o maior pintor de paisagens naturais do País, que era o Álvaro Duarte de Almeida e, dada a relação afetiva criada entre as nossas famílias, eles vieram viver para Alenquer em 1955 e assim se criou um núcleo de pintura, de campo, pintávamos muito a Lezíria e foi aí que me dediquei, exclusivamente, à pintura.

Fiz, durante a minha vida, 236 exposições individuais, tive algum êxito, mas também alguns problemas, quando abria as portas das exposições, na altura mandava convites pelo correio, e quando abria, já estava tudo vendido, as pessoas pediam para ir antes e reservavam o quadro e depois as pessoas reclamavam por estar tudo vendido.

Nunca fui muito pintor de encomendas, pediam-me para pintar uma quinta, e eu dizia que não, eu precisava de me inspirar num motivo e se algo não me inspirava eu não estava apto para tornar belo algo que não achava belo.

E o que é que o inspira mais?

É difícil de explicar, varia muito, por exemplo, estou a pensar numa arte figurativa urbana, casas, se calhar o Bairro Alto, por exemplo, que me diz muito mais que o Areeiro ou a Expo, e assim é.

Dediquei-me inteiramente à pintura e o que fiz para perpetuar essa questão e essa área da minha vida foi fazer o museu, que hoje contém mais de 1200 quadros, não só meus, também de amigos meus, nacionais e estrangeiros”.

O Museu João Mário é o maior museu privado do país?

Não é só do país. Tenho três ou quatro recortes de jornais estrangeiros a dizer que não havia museus privados maiores do que o meu e isso dá-me um certo gozo.

São raras as pessoas que venham e não voltem, com os netos, com os filhos, até com os vizinhos. Isso dá-me um certo prazer. Ainda anteontem, veio um casal de Miranda do Douro e eu perguntei porque é que eles tinham vindo de tão longe e eles disseram que foi um amigo deles que recomendou.


O José Hermano Saraiva gravou um programa sobre Alenquer e esteve no seu museu…

Ele quando trabalhava para a televisão, quando vinha para estes lados, passava por minha casa, eu levava o material de pintura, deixava-me no campo a pintar e quando voltava ia buscar-me ao campo e deixava-me em casa.

Eu uma vez disse-lhe que era de uma inteligência e de uma cultura fora do normal e ele disse-me que não era verdade, mas que tinha uma memória privilegiada.

Quais são as suas técnicas de pintura?

No mesmo quadro uso a espátula e o pincel, não sei se isto é muito correto, mas eu gosto mais da pintura à espátula, gosto de ver bastante tinta na pintura. Uma senhora uma vez disse, a brincar, que isso não era um mérito meu, que era devido ao facto do meu pai ter tido uma drogaria e eu ter tintas de borla (risos), mas às vezes, no céu, por exemplo, se tiver muita tinta, não fica tão bom e aí uso o pincel. Não sei se é correto, mas não me interessa muito a técnica, mas sim o resultado final.

Continua a pintar?

Ainda pinto, mas não tanto, e repito-me, a pintura depende muito da cabeça e se eu não estou tranquilo, calmo e com desejo e afetividade para pintar algo, não pinto, e se pinto, para ti talvez não, mas para mim não está bem. Vou falar outra vez do Hermano Saraiva. Ele quando me ia buscar ao campo, chegava e dizia que estava bestial, eu guardava tudo e às vezes voltava a agarrar no pincel e emendava determinada coisa e ele dizia que passava de uma coisa extraordinária para uma coisa sublime…

E o que é que faz aos quadros quando não gosta tanto deles?

Quando não gosto do quadro, mando fora, de forma geral não acabo. Não acontece muito, no princípio acontecia mais vezes.

Como é que olha para os seus quadros mais antigos?

Continuo a gostar deles, transportam-me para determinada época em que eu não tinha atingido a posição ideal, mas isso acontece.

Ainda está nos planos fazer mais alguma exposição?

Não penso em fazer mais nenhuma, sinto que não sou capaz. Se fizesse teria sido por me ter comprometido com a galeria tal e teria de fazer quadros de propósito e a pintura não pode ser isso. Não estou a intelectualizar a arte, mas a arte faz mesmo parte do intelecto de cada um e não podemos pintar o que não gostamos.

Há colegas meus que me espevitam a dizer que tenho de pintar x ou y e eu não sou capaz, estaria a pintar algo que não teria gosto e isso tem muita importância. Isso não é exclusivo para a pintura.

Sabe quantos quadros tem?

Tenho cinco mil e tal. Tenho duzentos e tal em minha casa. Às vezes troco os quadros que tenho em casa e no museu, vou mudando, todos merecem ser vistos. Tenho críticas a dizer que tenho quadros a mais no museu, que tenho demasiada informação, o que eu percebo. Há quadros que melhoram se estiverem isolados. Por exemplo, em muitos museus públicos há cordas à volta dos quadros, que nos fazem afastar dos quadros. É para isso mesmo, não é só para as crianças não tocarem.

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