“Um obrigado não chega”

A guerra na Ucrânia já fez milhões de refugiados. Alguns deles começam agora a chegar a Alenquer para recomeçar a vida do zero e o jornal Nova Verdade esteve à conversa com uma família ucraniana que contou com a solidariedade alenquerense para se fixar na vila alta.

A madrugada de 24 de fevereiro vai ficar para sempre na memória de Nataliia (61 anos), mãe de Valeriia (41), e os três filhos desta (duas meninas, de 5 e 11 anos, e um menino, de 10). O romper das bombas e o toque das sirenes anunciavam o início de uma guerra que ninguém esperava viver.

A simples e comum vida de Nataliia e Valeriia sofria uma reviravolta no espaço de poucas semanas porque, apesar de terem família em Portugal, estavam longe de imaginar que um dia chamariam “casa” ao nosso país.

Por cá, Yuliya, também filha de Nataliia, e a filha, Violeta, a viverem em Portugal há 20 anos, assistiam a tudo a mais de quatro mil quilómetros de distância. Não viam a família que deixaram na Ucrânia há mais de dez anos, mas o primeiro pensamento destas mulheres foi para os familiares.

As notícias que chegavam a partir da televisão trouxeram uma certeza: Yuliya e Violeta tinham de trazer a família para Portugal. “Ligámos todos os dias a chorar, a pedir para que viessem para Portugal. Mas eles não queriam vir, estiveram até à última”, começa por contar Yuliya.

“É a nossa pátria, não a queremos deixar”, era a resposta que ouvia sempre do outro lado do telefone nos primeiros dias de guerra. “Eles estavam sempre a dizer que já ia acabar, mas depois piorou e estava cada vez mais perto da nossa cidade. Nós estávamos aqui em lágrimas, nem conseguíamos falar do assunto”, conta Violeta.

O agravar da guerra, dia após dia, levou Nataliia e Valeriia a tomarem a decisão de viajar para Portugal. Mas o mais difícil estava ainda por vir: “Não havia nenhum transporte que os conseguisse levar da nossa cidade até Lviv, para depois virem para Portugal. Encontrar alguém que fosse até lá era quase impensável, havia carros mas não havia combustível e a maioria dos homens tentava não aparecer, porque se a polícia os apanhasse, tinham obrigatoriamente de sair e ir lutar também. Nós ligávamos todos os dias e eles diziam-nos que não tinham como ir, que encontravam o contacto de alguém, mas que depois não dava resultado. Mas foi a nossa insistência que as levou até cá”, explica Violeta.

Recomeçar do zero

A chegada a Portugal foi outro desafio para esta família. Era preciso agora começar do zero depois de atravessarem a Europa com apenas uma mochila nos ombros.

“Batemos a todas as portas a pedir ajuda. Nós temos um apartamento, mas era muito pequeno para cinco pessoas. Pensámos que nos primeiros tempos podiam estar connosco, mas até mesmo para o conforto deles precisávamos de outro espaço, porque senão eles não iam gostar de cá ficar e iam voltar sem pensar duas vezes. Por isso, pedimos ajuda ao senhor Eduardo, da igreja, e ao filho, que nos deram o contacto do senhor Luís Rema. Mas não estávamos à espera de receber esta ajuda”, confessa Violeta.

Neste momento a família está a viver na vila alta de Alenquer, numa casa cedida pela Santa Casa da Misericórdia, totalmente equipada. A chegada de refugiados estava a ser pensada desde que a guerra teve início e os pormenores não ficaram esquecidos: “Assim que a casa esteve pronta a habitar, fomos recebidos pelo senhor Luís Rema, que nos apresentou todos os cantos e o mais surpreendente foram os detalhes encontrados ao longo da visita. A cozinha estava equipada com as cores da bandeira ucraniana. Os quadros personalizados com as palavras ‘Paz’ e ‘Bem-vindos’ em ucraniano e português. Tudo pensado ao pormenor. É como se tivesse saído o Euromilhões. São condições que nos motivam a desenvolver, criar novas raízes e uma nova vida”, revela esta família.

Por cá, Nataliia e Valeriia já vão aprendendo algumas palavras em português. “Bom dia” ou “Como estás?” são algumas das expressões que já constam no pequeno caderno que Nataliia utiliza para não se esquecer do que aprendeu.

Mas são as crianças quem se está a adaptar mais facilmente à nova vida em Portugal. “As crianças adoram os professores. Eles não estavam à espera que os professores conseguissem falar com eles de alguma forma. Falam sobretudo em inglês, mas os professores também avisaram para levar os telemóveis para irem traduzindo o que diziam. As crianças estão a adorar, dizem que compreendem tudo”, afirma Violeta, entre os sorrisos dos três jovens.

É a adaptação dos adultos que está a ser mais difícil, sobretudo de Valeriia, que foi obrigada a deixar o seu emprego como psicóloga de crianças com necessidades especiais na Ucrânia. “É mais complicado para a minha tia, que estava num bom emprego e teve de deixar tudo para trás. Tem sido uma adaptação, psicologicamente mais complicada, mas aos bocadinhos está a conseguir. As crianças estão felizes e isso para ela significa muito”, admite Violeta. “Agora que já estão psicologicamente mais estáveis, já podemos começar a pensar noutros passos, como começar a procurar emprego”, completa.

Para que esta adaptação corresse bem contou muito a ajuda e apoio que foi sendo dada pelo povo alenquerense. “As pessoas que nós conhecemos aqui há muito tempo, em Alenquer, ajudaram-nos imenso, nos primeiros dias trouxeram muita roupa, roupa de cama, roupas para crianças. Fomos também falar com a escola, que nos disse que vai ajudar com os livros e com o material escolar”, explica Yuliya. “Não estávamos à espera desta ajuda. Sabemos que o povo português é amável e pronto a ajudar, mas desta forma, ficámos surpreendidos”, acrescenta Violeta.

Até chegar o dia em que poderá regressar à Ucrânia em paz, esta família vai criando as suas rotinas e rituais, como é o caso de Nataliia “que acorda todos os dias de manhã e vai até ao terraço, onde pode ver a vila de Alenquer, para agradecer a Deus e rezar por todas as pessoas que ajudam e que possibilitaram estarmos cá”.

E para que o agradecimento fique completo, a família pede para referir “alguns nomes que merecem um destaque” pelo apoio prestado durante esta jornada. “José Manuel, Elisete, Nuno, família e amigos. Senhor Eduardo e filhos João Carlos e Alexandra. Um obrigada não chega. Mas acima de tudo, ao Luís Rema, pela nova vida que nos está a proporcionar. Um homem de ações e poucas palavras”.

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